sábado, 8 de agosto de 2009

Ser policial...

Homem não chora nem por dor... nem por amor....

Ser policial é um sacerdócio profano, irreconhecido e marginalizado. Quando é honesto em um mundo consumista não faz nada mais do que sua obrigação. Tem que demonstrar força, mas tem horas que o gigante desaba. Até o mais operacional destemido tem seus momentos onde são tocados por alguma situação.

Não fazem o que fazem somente pelo dinheiro, pois não há dinheiro que pague o risco de vida. Muitos destemidos vão além do que são pagos pra ir e sofrem as consequências disso. Não há fortes quando se trata de ocorrência com crianças. Por mais frio que se possa ser, as ocorrências com crianças nos desmontam internamente fazendo nos questionar os designios de Deus.

Certa vez houve o chamado da central para um acidente. Colisão frontal é um pesadelo para qualquer um que tenha que ir ao local do acidente. Como policiais, somos chamados para todo e qualquer tipo de ocorrência. Temos noções de primeiros socorros e melhor do que as pessoas leigas, podemos dar uma primeira assistência até o encaminhamento das vítimas.

Chegando ao local, pude sentir o cheiro de sangue no asfalto, que é inconfundível. Um cheiro doce se espalhava há mais de 100 metros do local do acidente. Rapidamente me dirigi ao local da aglomeração para ver a situação das vítimas. Eram muitas! Dois carros se chocaram de frente, um taxi com 5 pessoas e um chevette com 7 ou 8 pessoas. No chevette, vítimas em choque psicológico davam trabalho para serem retiradas das ferragens. O motorista estava preso e era necessário tirar as outras vítimas primeiro, para que pudesse desmontar bancos, na esperança de soltá-lo.

Entrei pela porta do carona e fui tirando as vítimas no banco de trás, que estavam em choque psicológico e não entendiam ou reagiam ao que falava. Tirei uma por uma até me deparar com a pequena vítima de 8 anos. Quando me deparei com essa criança, minha primeira reação foi lembrar de todas as crianças que eu conhecia nessa idade. O impacto é grande, mas a vítima em minha frente dependia de mim e eu não podia entrar em choque também... não podia ser acometido pelo vírus do "colactus plactus*".

Com aquela cena, pensei em fazer tudo para preservar a vida daquele pequeno, que era, depois do motorista, a vítima mais grave daquele veículo. Retirei seus tenis que eram um pouco grandes para seus pés e coloquei embaixo do veículo, pensando em devolvê-los em uma visita assim que o pequeno tivesse alta do hospital. Suas pequenas pernas estavam fraturadas em vários locais e não havia como imobilizar ali naquelas condições. Solicitei que a viatura se posicionasse de modo em que quando retirasse a criança do veículo, a mesma fosse colocada no banco de trás para ser enviada imediatamente para o hospital, visto que nenhuma ambulância ainda havia chegado. A criança estava desmaiada com sangue saindo pelos ouvidos, o que pode indicar traumatismo craniano com sinais de choque... onde deveria ser imadiatamente removida. Com todo o cuidado retirei a criança do banco de trás, a colocando no banco de trás da viatura. Depois disso ainda fui soltar o motorista das ferragens... mas essa já é outra história.

O tempo foi passando automaticamente naquela tarde. Nem me lembro se almocei naquele dia... As outras vítimas menos graves foram sendo encaminhadas nas ambulâncias que passavam, no carro de particulares... e fui sobrando, suado, cansado, ensanguentado... com a sensação de dever cumprido.

Meu dever ainda não estava cumprido. Olhei para baixo do carro e vi os enormes tenis do menino que havia retirado e encaminhado para o hospital. Aqueles tenis com luzes piscantes ainda deveriam correr muito em suas brincadeiras... Com a sensação de que havia sido um herói naquele dia, fui ao hospital no dia seguinte ao fim do meu plantão para visitar aquele pequeno que me lembrava muitas crianças alegres e brincalhonas dos lugares onde morei. Chegando lá econtrei alguns familiares e procurei saber a situação do menino, onde estava, se era possível alguma visita.

Sem esquecer os tenis levados em uma das mãos, procurava informações junto aos familiares quando um dos parentes me falou que o pequeno havia sobrevivido. Em minha mente, imaginei a cena do policial herói ao lado da cama do menino, dizendo que havia guardado algo para ele, algo que provavelmente havia trazido muita alegria no momento da compra. Minha imaginação não durou muito, pois fui informado duramente que o menino havia perdido as pernas devido às multiplas fraturas.

Realmente nessa hora todas as crianças que brincavam em minha mente pararam e olharam pra mim... toda sensação de heroísmo descia pelo ralo e dava lugar a uma tristeza sem tamanho. Nada mais impróprio do que aqueles enormes tenis piscantes em minhas mãos. Era como se eu estivesse sendo o autor de uma piada de humor negro.

Fui beber água para colocar as idéias no lugar e coloquei os tênis, um ao lado do outro, perto de uma janela... nem sem se bebi água. A tristeza só queria me levar para baixo do chuveiro e para baixo dos lençois. Não olhei para trás... o herói teve que sair o mais rápido daquele hospital com uma sensação jamais sentida antes. Tristeza, angústia...

Até hoje, quando me lembro do ocorrido, sinto um nó na garganta por tudo o que aconteceu. Nem sempre as coisas ocorrem como queríamos e as vezes elas ocorrem em direção diametralmente opostas ao que imaginamos.

* "Colactus plactus" - expressão usada para dizer que o policial "colou as placas", ou seja, ficou sem reação diante de um acontecimento.

Um comentário:

  1. Puxa, como eu disse, que Deus lhe abençoe por ser um policial-herói... bjobjo!

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